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domingo, 18 de maio de 2008

"Artes Irmãs"

Quando lemos a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada de Homero ficamos maravilhados pela plasticidade da linguagem que nos faz visualizar todas aquelas imagens como se tivessemos herdado aquele escudo e o tivessemos mesmo em frente aos nossos olhos. Sugere-nos até o movimento, o desenrolar de uma acção própria; sugere-nos até a metamorfose das letras em tintas. Este é o primeiro exemplo de ekphrasis que conhecemos.
Seguindo Homero, Virgílio e Ovídio, como pintores que pintam a sua tela, fazem com as suas palavras verdadeiros quadros: descrições de uma visualidade incrível, que se pintam aos olhos do leitor à medida que vai lendo as páginas da Ilíada, da Eneida ou das Metamorfoses.
Assim como os textos dialogam entre si, nas diferentes artes também podemos estabelecer relações: a Literatura e a Pintura são as "Artes Irmãs" de que falam os Estudos Comparativistas.
Esta quase transformação das palavras em tintas, do papel em tela, é sugerida pelo recurso à ekphrasis, que pode ser definida à partida como uma descrição poética de um objecto. Fernando Martinho diz que o sentido primitivo dado à ekphrasis "não se restringia à descrição de uma obra de arte, englobando antes a «descrição global de uma coisa, quase tudo, na vida e na arte»". Ekphrasis seria então na Antiguidade uma descrição poética (e por isso verbal) que remetia para algo que estava fora do texto, para além dele, "no sentido em que visa exprimir verbalmente algo que não é composto por palavras", neste caso algo de visual.
O Leitor ganha extrema importância neste contexto, pois as palavras escritas pelo poeta devem ter o poder de criar no receptor uma imagem mental, mesmo que este nunca tenha visto o objecto em causa, até porque muitos desses objectos fariam parte da ficção. Esclarece Mª Fernanda Conrado que "a essa capacidade de sugestão imagética, de criar uma imagem vívida na mente do leitor chamavam os gregos enargeia, e é um requisito particular da ekphrasis tradicional".
Não resisto a fazer aqui uma pequena citação do Livro I das Metamorfoses, cuja sensibilidade, lirismo e platicidade saltam á vista:

"A própria terra, isenta de deveres, intocada pela enxada,

Ferida por nenhum arado, tudo dava espontaneamente. (...)

E o campo sem lavra empalidecia de carregadas espigas.

E então, corriam rios de leite, então, rios de néctar,

E loiro mel pingava do cimo da verdejante azinheira".

Afinal... vale a pena ler os clássicos!!!

Fios que se continuam a entrelaçar

Em Literatura Comparada são fundamentais as questões das fontes e das influências. Desde sempre que os autores, ou os artistas, se "olham", se "tocam" e muitas vezes se "pintam", com maior realismo ou maior subjectividade. Como já vimos o texto, como a vida humana, é constituído por uma teia de complexidades, que vai rementendo para outros textos, para outros autores. Há uma metamorfose dos temas consoante o contexto presente e a persona que os re-cria. Como os mitos que nos acompanham desde a Antiguidade e que continuam vivos, porque adaptáveis ao presente. Em Metamorfoses, Ovídio diz que "a maior parte deles [dos mitos] vive connosco".
Esta teia de relações ininterrupta, lembra o próprio mito de Aracne, bela donzela da Lídia cuja arte de tecer tinha uma fama tão grande que até as ninfas vinham vê-la. Mas Aracne, orgulhosa, julgou-se maior que Minerva (corresponde a Atena, deusa ligada à guerra, à oliveira e também à tecelagem). Típico das relações entre deuses e mortais que se julgam maiores que eles, Minerva põe Aracne à prova e no fim castiga-a: metamorfoseada em aranha, Aracne é condenada a tecer a sua teia eternamente.
Teia que podemos relacionar mais uma vez com a tradição literária, pois é próprio do Homem ouvir e contar histórias, acrescentando cada um, à sua maneira, mais um ponto dessa tão grande manta de retalhos. Teia que relacionamos também com o sentido etimológico de texto, tecido.

Nas Metamorfoses, Ovídio utiliza um termo no prólogo "deducite" que vem do verbo deducere (conduzir). O tradutor, Paulo Farmhouse Alberto esclarece-nos:

"No termo, somam-se duas metáforas. Por um lado, o verbo remetia para o campo semântico da tecelagem e tinha o sentido de "fiar a lã"; a construção literária era, assim, um processo de puxar de uma massa de lã um fio, retorcendo-o, trabalhando-o com os dedos, por forma a transformá-la nos mais belos tecidos. Por outro lado, também poderia subentender-se nele uma imagem naútica: é o termo usado para fazer descer para a água o barco posto a seco, para dar início à navegação, ou seja, para iniciar a narração do poema, qual viagem sobre o mar".