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terça-feira, 24 de junho de 2008

O dom da palavra

Antes da escrita ter sido inventada, pelo menos da maneira que conhecemos, a oralidade tinha um papel preponderante. Toda a educação do novo indivíduo, toda a herança cultural e histórica de uma comunidade era feita através da oralidade. E a palavra tinha um dom, uma magia, quase inexplicável, quase misteriosa.
Sabemos que os diversos episódios da Íliada e da Odisseia terão sido cantados pelos aedos, acompanhados de música, enquanto se serviam os banquetes. A palavra cantada/recitada penetrava mais fundo no coração de quem a escutava: Ulisses chora ao ouvir cantar os acontecimentos de Tróia na ilha dos Feaces.
Da Europa do Norte também ouvimos histórias maravilhosas e fantásticas sobre druidas, fadas e elfos, etc. Os bardos imortalizavam as tradições e a cultura através de versos cantados.
Na nossa Hispânia também os trovadores e jograis cantavam na Idade Média as cantigas galego-portuguesas nas cortes (cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer), enquanto o povo fazia os seus próprios cantares, o seu folclore.
Hoje um e-mail pode dar a volta ao mundo em pouco tempo. Antigamente, os cantos, as músicas, as histórias caminhavam pelos homens lentamente, mas não deixava de haver intercâmbio: os valores do passado, as lendas das origens e do princípio do universo, as lendas dos grandes heróis, os mitos dos deuses e semi-deuses, as histórias de amores impossíveis, …, eram transmitidos assim, oralmente. Tal e qual como a canção:

Cantiga da rua,
Das outras diferente
Nem minha nem tua
É de toda a
gente
Cantiga da rua
que sobe e flutua
mas não se detém,
inscontante
e louca
vai de boca em boca
não é de ninguém.

Cantiga da
rua
Veloz Andorinha
Não pode ser tua
E não será minha…
Cantiga da
rua
Jamais se habitua
Aos lábios de alguém
Vive independente
É de
toda a gente
Não é de ninguém!

E assim, de boca em boca, também podia correr mundo...

domingo, 18 de maio de 2008

"Artes Irmãs"

Quando lemos a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada de Homero ficamos maravilhados pela plasticidade da linguagem que nos faz visualizar todas aquelas imagens como se tivessemos herdado aquele escudo e o tivessemos mesmo em frente aos nossos olhos. Sugere-nos até o movimento, o desenrolar de uma acção própria; sugere-nos até a metamorfose das letras em tintas. Este é o primeiro exemplo de ekphrasis que conhecemos.
Seguindo Homero, Virgílio e Ovídio, como pintores que pintam a sua tela, fazem com as suas palavras verdadeiros quadros: descrições de uma visualidade incrível, que se pintam aos olhos do leitor à medida que vai lendo as páginas da Ilíada, da Eneida ou das Metamorfoses.
Assim como os textos dialogam entre si, nas diferentes artes também podemos estabelecer relações: a Literatura e a Pintura são as "Artes Irmãs" de que falam os Estudos Comparativistas.
Esta quase transformação das palavras em tintas, do papel em tela, é sugerida pelo recurso à ekphrasis, que pode ser definida à partida como uma descrição poética de um objecto. Fernando Martinho diz que o sentido primitivo dado à ekphrasis "não se restringia à descrição de uma obra de arte, englobando antes a «descrição global de uma coisa, quase tudo, na vida e na arte»". Ekphrasis seria então na Antiguidade uma descrição poética (e por isso verbal) que remetia para algo que estava fora do texto, para além dele, "no sentido em que visa exprimir verbalmente algo que não é composto por palavras", neste caso algo de visual.
O Leitor ganha extrema importância neste contexto, pois as palavras escritas pelo poeta devem ter o poder de criar no receptor uma imagem mental, mesmo que este nunca tenha visto o objecto em causa, até porque muitos desses objectos fariam parte da ficção. Esclarece Mª Fernanda Conrado que "a essa capacidade de sugestão imagética, de criar uma imagem vívida na mente do leitor chamavam os gregos enargeia, e é um requisito particular da ekphrasis tradicional".
Não resisto a fazer aqui uma pequena citação do Livro I das Metamorfoses, cuja sensibilidade, lirismo e platicidade saltam á vista:

"A própria terra, isenta de deveres, intocada pela enxada,

Ferida por nenhum arado, tudo dava espontaneamente. (...)

E o campo sem lavra empalidecia de carregadas espigas.

E então, corriam rios de leite, então, rios de néctar,

E loiro mel pingava do cimo da verdejante azinheira".

Afinal... vale a pena ler os clássicos!!!